O mal estar na civilização chinesa – 2013 – Arilson Favareto

Jia Zhang-Ke é visto por muitos como um dos mais importantes diretores de cinema da atualidade. Ele só teve apoios estatais para suas produções após ter filmado de forma independente e se tornar conhecido como um jovem talento. Dois de seus filmes mais recentes (infelizmente não vi outros) são excelentes retratos críticos da sociedade chinesa contemporânea. E, se é possível algum paralelo com o Brasil, este poderia ser assim expresso: não se deve invejar o crescimento econômico chinês.

Num filme anterior, o belíssimo “Em busca da vida”, premiado no Festival de Veneza de 2006, a construção da Hidrelétrica de Três Gargantas, a maior do mundo e símbolo do gigantismo do país, serve como pano de fundo para mostrar como a modernização chinesa não afeta de maneira unívoca a vida das pessoas. Ela opera aprofundando a desclassificação, destruindo laços, no caso dos que ocupam posições mais periféricas na hierarquia social. Ou abrindo possibilidades, no caso daqueles que contam com ao menos alguns trunfos, como escolarização (capital cultural) ou uma rede de relações (capital social) que lhes permita acessar as oportunidades de trabalho vantajosas ou uma mobilidade espacial ascendente.

O filme mais recente e ainda em cartaz nos cinemas, “Um toque de pecado”  , é ainda mais ácido – muito mais ácido – ao mostrar como, com a modernização à moda chinesa, o desconforto cresce e explode, em alguns casos literalmente. São quatro casos nos quais novas trajetórias sociais tornadas possíveis com o enriquecimento da sociedade chinesa se transformam em opressão vivida dolorosamente (e sempre à beira do limite do suportável) por pessoas muito diferentes, das distintas classes sociais. Nos quatro casos esta opressão, em algum momento, encontra a gota d´água e, num toque de pecado, faz transbordar o copo, sob a forma do descontrole e da violência.

Ao ver o filme vem à mente “O processo civilizatório” e “A sociedade dos indivíduos”, livros clássicos de Norbert Elias, e sua ideia de que a modernização se apoia numa ambiguidade: uma centralização do monopólio da violência nas mãos do Estado (algo dito originalmente por Weber), mas também uma desconcentração dos meios de exercício desta violência, com as várias instituições que regulam a vida social e, principalmente, os próprios indivíduos internalizando as normas que contém as pulsões mais fundamentais do ser humano: o gozo e a morte, o prazer e a violência. Sem essa contenção, a vida social se tornaria impossível. Mas com o excesso de contenção ela se torna o inferno. Num livro póstumo, “Sur l´État”, Pierre Bourdieu acrescenta um grão de sal nesta ideia, ao dizer que não se trata só do controle da violência física, mas também da violência simbólica.

O que isso tem a ver com o filme?  Uma das mensagens possíveis é que, na sociedade chinesa contemporânea, a carga transborda de cada personagem como violência direta porque o processo de modernização não estaria conseguindo equacionar esta ambiguidade. Equacionar é o termo, já que resolver a ambiguidade é impossível por se tratar de algo atávico à condição moderna. No filme os indivíduos “fazem justiça” porque não veem os meios para que ela seja feita por quem deveria fazê-la, o Estado e a ordem legal. E se deixam levar pelo toque do pecado porque sua libido individual não se realiza como libido social, isto é, o prazer e a satisfação individual são menores do que a dor acumulada no desconforto de um mundo duro e que não apresenta possibilidades de realização do futuro onde isso seja substituído por uma representação de si e da sociedade mais convergente, menos dissociada. A ruptura acontece porque o fio que a impede é muito tênue em todo e qualquer indivíduo; e nestes, mais ainda.

A maneira como se relacionam com a violência o primeiro e o ultimo dos personagens do filme é emblemática disso. O primeiro a vive, aparentemente, sem culpa. Porque é o mais deslocado das perspectivas de mobilidade trazidas com a modernização chinesa. Nele a violência é natural. É como se a nova China não tivesse chegado para ele. Logo, não há conflito, porque a ordem moderna, para ele, simplesmente não se constituiu, ou ao menos não se impôs. O ultimo também parece não viver em conflito, mas pela razão contrária. Surge como o mais feliz entre os personagens, e o que mais se move de um espaço a outro na nova ordem social competitiva. Parecia ser o mais ajustado. Mas justamente no caso dele a violência não transborda, ela implode, porque nele o recalcamento é mais forte. Os dois personagens do meio, por sua vez, são encarnações mais diretas e explícitas desse desencaixe entre o eu e nós.  Parafraseando o título do livro clássico de Freud, não é um filme sobre a violência, como tem sido dito por alguns, ele trata de algo mais profundo: o mal estar na civilização chinesa.

 São Paulo, 19 de Janeiro de 2014

 

Em busca da vida (2006)

 

Um toque de pecado (2013)